Artista de São Mateus, Kari, pinta clássicos do hip hop em peças vintage
Sté Reis
04/08/2019 23h35
"Meu processo criativo é muito intuitivo. Geralmente, fico obcecada por algum artista, grupo ou acontecimento da época e faço uma pintura como forma de homenagem e isso acaba virando um momento de estudo também", explica Kari (Reprodução | Doomsday)
Inspirada na estética periférica que deu origem à cultura de rua norte-americana e latina, a estilista Kari Rodrigues criou o Doomsday, com peças pintadas manualmente, para manter a cultura hip hop viva. De São Mateus, ela garimpa principalmente modelos de jeans vintage, uma peça que teve seu auge nos anos 80, mas nunca saiu de moda, e usa o grafite oldschool para relembrar Wu Tang Clan, TuPac e Eazy-E.
"Nasci em 97, em São Mateus (periferia do extremo Leste de São Paulo), então fui desde cedo vivendo no cenário onde os grafites do grupo OPNI e o som do Demenos Crime e Consciência Humana estavam comendo soltos na vila", explica. "Conforme fui crescendo, era meio natural que o rap trouxesse essa 'nostalgia' e fui me interessando em pesquisar mais a fundo e entender o movimento como um todo."
Dos panos de prato às jaquetas customizadas
Kari dá aula em alguns projetos sociais e nesta última jaqueta que produziu, as crianças ajudaram a pintar. "Além do resultado final da arte, é legal saber que várias mãozinhas passaram por ali. Várias mentes aprenderam uma coisa nova enquanto estavam dando atenção para aquela peça, que foi criada dentro de um processo de compartilhamento de conhecimento, isso é lindo" (Reprodução | @projdoomsday)
"O lance todo de pintar nas roupas eu nem sei dizer exatamente como começou, foi um processo muito natural. Lembro que quando tinha 8 anos comecei a pintar no tecido porque uma vizinha da minha vó pintava pano de prato e, como eu passava o dia lá, ela foi me mostrando as manhas", explica ao Asfalto. "Depois disso nunca mais parei. No ensino médio, pintava camiseta e moletom para o pessoal. Nessa época, ainda não tinha contato direto com o grafite, acho que o meu maior receio era por não conhecer uma referência feminina na cena. Além disso, estar na rua pra mina sempre é mais brecado (sic) né. A gente é criada entendendo que tem que ficar em casa, que fazer coisa de se sujar, de pegar no pesado é coisa de homem."
O grafite começou a tomar forma como uma saída criativa da artista em 2017, quando ela já customizava peças num embrião do que seria o Doomsday. A ideia decolou quando ela começou a pesquisar referências no hip hop. "Comecei a usar as referências do começo dos anos 80, 90, quando as gangs e crews de bboys e bgirls usavam jaquetas jeans pintadas para mostrar uma identidade. Era uma forma de se expressar da quebrada, poder andar com um kit da hora sem depender de marca cara. Fora que o resultado final de um trampo manual é bem mais louco."
Upcycling é futuro da moda
Entre os grafiteiros favoritos da artista estão, Lady Pink, Gleo, Paula Tikay, Kueia, Panmela Castro, Grupo Opni, Natalia Mota, Clara Leff, Wanatta, Pedro Discordia, Quinho e Agnaldo Mirage (Reprodução | @projdoomsday)
Apesar de hoje seguir uma pegada de upcycling (modelo de reciclagem de peças que dá nova vida à roupas usadas), ela diz que a intenção inicial era aproveitar o baixo custo dos brechós. Com o tempo, ela foi se profissionalizando. Fez cursos de moda, planejamento de coleção para organizar o processo criativo e tornar o projeto rentável também. Hoje, reciclar peças é uma visão política, que ela considera o futuro da moda. "As pessoas estão começando a ficar mais ligeiras e procurando alternativas sustentáveis para coisas do dia a dia. Por mais que o capitalismo cada vez mais leve ao consumismo inconsciente, eu acredito que vai chegar uma hora em que vão perceber o quão podre é a indústria da moda, como é prejudicial à natureza e o quanto de lixo desnecessário o consumo gera."
Dicas de brechós na Zona Leste
Todas as peças são únicas e ficam disponíveis por tempo limitado no Instagram da artista (Reprodução | Doomsday)
As dicas de brechós da artista também são periféricas, longe do glamour dos preços altos que giram em torno de brechós nas regiões mais centrais da cidade. "O melhor lugar pra encontrar peças é em brechó de vila, nesses que a rinite até ataca quando a gente entra sabe?", comenta entre risos.
"Em São Mateus tem vários bons. Um que sempre acho jaquetas e jeans antiguera é na Dona Vera, que fica na Avenida Paulino Cursi, ela tem a marca independente dela também, chama a Dona Vera Vest, mulher guerreira. Mas, não tem segredo. Para achar umas roupas legais sem pagar preço de shopping, tem que sair na sede de achar, não ficar em choque quando ver uma montanha de roupa que você tem que mergulhar. Vai muito da sorte também, direto estou passando de busão e vejo pela janela um brechó que parece valer a pena, é só descer e curiar."
Delinquent Habits na jaqueta com a capa do primeiro álbum deles, referência do filme classico Warriors (Reprodução | Doomsday)
Capa de um clássico do Funkadelic, pintado à mão por Kari (Reprodução | Doomsday)
Eazy-E, do NWA, em uma das jaquetas do projeto Doomsday (Reprodução | Doomsday)
Sobre a autora
Nascida e criada na periferia de São Paulo, Sté Reis estudou Jornalismo na São Judas e desde então escreve sobre sua relação com as ruas da capital. Se especializou em cultura underground, música e feminismo, foi repórter em UOL Entretenimento e tem textos publicados no Zona Punk, Youpix, Brainstorm9, Deepbeep, Rolling Stone, MTV e Facebook Brasil. É assistente de conteúdo do DJ Marky, do rapper Projota, e compartilha seus achados no Malaguetas, há mais de dez anos no ar.
Sobre o blog
Histórias de quem ocupa a cidade e dicas de intervenções urbanas, música, cultura pop e esportes de rua para quem encara o asfalto de São Paulo e busca novas formas de viver a capital.